Ontem à noite, antes de adormecer, pus-me a pensar em algumas coisas da minha infância, inclusivé nas formas de lazer, nomeadamente num jogo: o Mikado. E nessa altura abre-se uma porta que há muito se encontrava trancada na minha mente. Se havia assunto que eu não esperava que me voltasse à mente, nunca mais, na minha vida, era o jogo do Mikado. Mas agora que está aberta essa porta, vou ter de partilhar as minhas memórias desse clássico. Lembram-se desse jogo? Toda a gente o tinha. Era barato. Consistia numa caixa cheia de pauzinhos compridos, das mais variadas cores, sendo que o objectivo era atirar os pauzinhos para cima de uma mesa, ao calhas, num monte, e depois tentar tirá-los um por um sem mexer nos outros. Cada cor valia um certo número de pontos e no fim ganhava quem tivesse mais pontos… e perdia, para alem de ser quem tivesse menos pontos, perdia quem, sem querer, ao tirar o seu pauzinho, fizesse outros pauzinhos mexer. Portanto, a pessoa tinha de estar ali praticamente sem respirar, com o dedo indicador e o polegar, a tentar pegar em pauzinhos… Hããã… Parvo.
Eu imaginava que a invenção do Mikado tivesse sido qualquer coisa como isto… Um maluco vê o êxito que o Xadrez tem e pensa: “
Dãããã… Eu também consigo inventar um jogo destes… Dãããã…”
E assim foi. O tipo pegou numa série de galhos de árvore e inventou aquilo que, na cabeça dele, devia ser um complexo jogo de estratégia.
E o mundo caiu na esparrela. Eu lembro-me que quando me ofereceram a minha própria caixa de Mikado, toda a gente adorava jogar aquilo. Toda a gente achava que aquilo era uma boa ideia. E era um dos presentes mais oferecidos às crianças, um joguinho de Mikado.
Agora reparem o que se estava a oferecer aos putos: nada mais nada menos do que uma caixa cheia de enormes espigões de plástico duro, o tipo de coisa que assegurava sérias hipóteses de um jogo acabar com um dos participantes cego ou com a jugular a jorrar um bonito repuxo de sangue.
Uma coisa que me lembro na caixa do Mikado é que ela tinha desenhado na tampa um chinês – um daqueles chineses clássicos, com aqueles chapéus de palha em bico, a jogar Mikado à porta de um pagode também chinês. Aqui começa a parvoíce, dado que a palavra “Mikado” é japonesa e não chinesa. “Mikado” significa “imperador”, em japonês. Continuando a palermice – apesar do jogo ter um nome japonês e vir numa caixa que tem um chinês na tampa, a verdade é que o Mikado foi criado na Hungria e depois popularizado na América.
Tanta confusão para um jogo que consiste em apanhar pauzinhos de plástico um por um. Realmente a coisa mais emocionante do Mikado era o receio de que alguém acabasse gravemente espetado por uma das peças do jogo.
Imagino que no auge do Mikado devam ter acontecido coisas formidáveis, como mães e pais dizendo aos filhos: “
Pára já de brincar com os garfos e as facas, que é perigosíssimo! Porque é que não vais brincar com o Mikado?”
O que é que aconteceu ao Mikado, hoje em dia? Ainda se vende? Agora há todas aquelas normas da União Europeia… Penso que o Mikado, em toda a sua simplicidade, deveria violar todas elas. Como é que aquilo passava, hoje em dia… “
Ora bom, senhor fiscal da União Europeia, temos aqui, portanto, um jogo para as crianças…”
“E então em que é que consiste? Cartas?”
“Não, senhor.”
“Cubos?”
“Não.”
“Bonecos de peluxe?”
“Não, senhor.”
“Então?”
“Consiste numa caixa cheia de paus afiados.”
“Meu caro senhor, esse jogo não só não está aprovado, como teremos de o prender.”